“Mulher sertaneja, livre, turbulenta, cultivadamente rude... |
Cora Coralina, de Goiás
Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina.
Cora Coralina, tão gostoso pronunciar esse nome, que começa aberto em rosa e depois desliza pelas entranhas do mar, surdinando música de sereias antigas e de dona Janaína moderna.
Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o Governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é, por exemplo, uma estrada.
Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade vária. Escutemos:
"Vive dentro de mim/ uma cabocla velha/ de mau olhado,/acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo." "Vive dentro de mim/a lavadeira do rio Vermelho. Seu cheiro gostoso d'água e sabão." "Vive dentro de mim/a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem-feito." "Vive dentro de mim/a mulher proletária./Bem linguaruda,/desabusada, sem preconceitos." "Vive dentro mim/a mulher da vida./Minha irmãzinha.../tão desprezada /tão murmurada...".
Todas as vidas. E Cora Coralina as celebra todas com o mesmo sentimento de quem abençoa a vida. Ela se coloca junto aos humildes, defende-os com espontânea opção, exalta-os, venera-os. Sua consciência humanitária não é menor do que sua consciência da natureza. Tanto escreve a Ode às Muletas como a Oração do Milho. No primeiro texto, foi a experiência pessoal que a levou a meditar na beleza intrínseca desse objeto ("Leves e verticais. Jamais sofisticadas.! Seguras nos seus calços!de borracha escura. Nenhum enfeite ou sortilégio"). No segundo poema, o dom de aproximar e transfigurar as coisas atribui ao milho estas palavras: "Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece. Sou o cocho abastecido donde rumina o gado. Sou a pobreza vegetal agradecida a vós, Senhor."
Assim é Cora Coralina: um ser geral, "coração inumerável", oferecido a estes seres que são outros tantos motivos de sua poesia: o menor abandonado, o pequeno delinqüente, o presidiário, a mulher-da-vida. Voltando-se para o cenário goiano, tem poemas sobre a enxada, o pouso de boiadas, o trem de gado, os becos e sobrados, o prato azul-pombinho, último restante de majestoso aparelho de 92 peças, orgulho extinto da família. Este prato faz jus a referência especial, tamanha a sua ligação com usos brasileiros tradicionais, como o rito da devolução: "Às vezes, ia de empréstimo/ à casa da boa Tia Norita.!E era certo no centro da mesa/de aniversário, com sua montanha/de empadas bem tostadas./No dia seguinte, voltava,/conduzido por um portador/que era sempre o Abdenago, preto de valor,/de alta e mútua confiança./Voltava com muito-obrigados/e, melhor cheinho/de doces e salgados./Tornava a relíquia para o relicário..."
Relicário é também o sortido depósito de memórias de Cora Coralina. Remontando à infância, não a ornamenta com flores falsas: "Éramos quatro as filhas de minha mãe. Entre elas ocupei sempre o pior lugar." Lembra-se de ter sido "triste, nervosa e feia./Amarela, de rosto empalamado./De pernas moles, caindo à toa." Perdera o pai muito novinha. Seus brinquedos eram coquilhos de palmeira, caquinhos de louça, bonecas de pano. Não era compreendida. Tinha medo de falar. Lembra com amargura essas carências, esquecendo-se de que a tristeza infantil não lhe impediu, antes lhe terá preparado a percepção solidária das dores humanas, que o seu verso consegue exprimir tão vivamente em forma antes artesanal do que acadêmica.
Assim é Cora Coralina, repito: mulher extraordinária, diamante goiano cintilando na solidão e que pode ser contemplado em sua pureza no livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. Não estou fazendo comercial de editora, em época de festas. A obra foi publicada pela Universidade Federal de Goiás. Se há livros comovedores, este é um deles. Cora Coralina, pouco conhecida dos meios literários fora de sua terra, passou recentemente pelo Rio de Janeiro, onde foi homenageada pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil, como uma das 10 mulheres que se destacaram durante o ano. Eu gostaria que a homenagem fosse também dos homens. Já é tempo de nos conhecermos uns aos outros sem estabelecer critérios discriminativos ou simplesmente classificatórios.
Cora Coralina, um admirável brasileiro. Ela mesma se define: "Mulher sertaneja, livre, turbulenta, cultivadamente rude. Inserida na gleba. Mulher terra. Nos meus reservatórios secretos um vago sentido de analfabetismo." Opõe à morte "aleluias festivas e os sinos alegres da Ressurreição. Doceira fui e gosto de ter sido. Mulher operária".
Cora Coralina: gosto muito deste nome, que me invoca, me bouleversa, me hipnotiza, como no verso de Bandeira.
Carlos Drummond de Andrade
Caderno B - Jornal do Brasil - Rio de Janeiro, sábado, 27 de dezembro de 1980 - Página 7
Cora Coralina, Quem é Você?
Sou mulher como outra qualquer.
Venho do século passado
e trago comigo todas as idades.
(...)
Menina Mal Amada
(...)
Daí minha fuga para o enorme quintal onde meus
sentidos foram se aguçando
para as pequenas ocorrências de que não participavam
minhas irmãs.
Minhas impressões foram se acumulando lentamente
e eu passei a viver uma vida estranha de mentiras e
realidades.
(...)
Nasci antes do Tempo
(...)
Tudo que criei, imaginei e defendi
nunca foi feito.
E eu dizia como ouvia
a moda de consolo:
nasci antes do tempo.
Alguém me retrucou:
você nasceria sempre
antes do seu tempo.
Não entendi e disse Amém.
Semente e Fruto
(...)
Despojada. Apedrejada.
Sozinha e perdida nos caminhos incertos da vida.
E fui caminhando, caminhando...
E me nasceram filhos.
E foram eles, frágeis e pequeninos,
carecendo de cuidados,
crescendo devagarinho.
E foram eles a rocha onde me amparei.
anteparo à tormenta que viera sobre mim.
(...)
Estas Mãos
(...)
Minhas mãos doceiras...
Jamais ociosas.
Fecundas. Imensas e ocupadas.
Mãos laboriosas.
Abertas sempre para dar,
Ajudar, unir e abençoar.
(...)
Fonte dos poemas: Cora Coralina, volume da coleção Melhores Poemas, da Editora Global, com seleção da ensaísta e crítica literária Darcy França Denófrio. Copiados de SESC SP | ONLINE
Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, (Cidade de Goiás, 20 de agosto de 1889 - Goiânia, 10 de abril de 1985) foi uma poetisa e contista brasileira. Considerada uma das principais escritoras brasileiras, ela teve seu primeiro livro publicado em junho de 1965 (Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais), quando já tinha quase 76 anos de idade.
Mulher simples, doceira de profissão, tendo vivido longe dos grandes centros urbanos, alheia a modismos literários, produziu uma obra poética rica em motivos do cotidiano do interior brasileiro, em particular dos becos e ruas históricas de Goiás.
Divulgação nacional
Foi ao ter a segunda edição (1978) de Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, composta e impressa pelas Oficinas Gráficas da Universidade Federal de Goiás, com capa (retratando um dos becos da cidade de Goiás) e ilustrações elaboradas pela consagrada artista Maria Guilhermina, orelha de J.B. Martins Ramos, e prefácio de Oswaldino Marques, saudada por Carlos Drummond de Andrade no Jornal do Brasil, a 27 de dezembro de 1980, que Aninha, já conhecida como Cora Coralina, ganhou a atenção e passou a ser admirada por todo o Brasil. "Não estou fazendo comercial de editora, em época de festas. A obra foi publicada pela Universidade Federal de Goiás. Se há livros comovedores, este é um deles." Manifesta-se, ao ensejo, o vate Drummond.
A primeira edição de Poemas dos Becos de Goiás e estórias mais, seu primeiro livro, foi publicado pela Editora José Olympio em 1965, quando a poetisa já contabilizava 75 anos. Reúne os poemas que consagraram o estilo da autora e a transformaram em uma das maiores poetisas de Língua Portuguesa do século XX. Já a segunda edição, repetindo, saiu em 1978 pela imprensa da UFG. E a terceira, em 1980. Desta vez, pela recém implantada editora da UFG, dentro da Coleção Documentos Goianos.
Onze anos depois da primeira edição de Poemas dos Becos de Goiás e estórias mais, compôs, em 1976, Meu Livro de Cordel. Finalmente, em 1983 lançou Vintém de Cobre - Meias Confissões de Aninha (Ed. Global).
Cora Coralina recebeu o título de Doutor Honoris Causa da UFG (1983). E, logo depois, no mesmo ano, foi eleita intelectual do ano e contemplada com o Prêmio Juca Pato da União Brasileira dos Escritores. Dois anos mais tarde, veio a falecer. A 31 de janeiro de 1999, a sua principal obra, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, foi aclamada através de um seleto júri organizado pelo jornal O Popular, de Goiânia, uma das 20 obras mais importantes do século XX. Enfim, Cora torna-se autora canônica. Wiki
Para saber mais:
Textos
- Artigo sobre Cora Coralina em SESC SP | ONLINE
- Página sobre Cora Coralina em Antoniomiranda.com.br
- O Itinerário Poético-Intelectual de Cora Coralina, por Clovis Carvalho Britto em Seminário Internacional Mulher e Literatura (PDF)
Vídeos
1 - Jornal do Brasil
2 a 5 - Google Imagens
E o que é vivo desabrocha no deserto...
ResponderExcluirbeijo
@mム尺goん É verdade e obrigado!
ExcluirBeijo