domingo, 23 de agosto de 2015

Azul da cor do mar - Descortinando Nelson Rodrigues (escritor)



Jorge chega em casa e encontra seus amigos, Júlio e Carlos, conversando dentro do carro, então ele solta um sonoro oi, que é respondido com vários sinais para que não faça barulho. Sem entender nada ele, agora bem baixinho, pergunta:

- Me fala aí, o que tá pegando?

Eles se entreolharam e disseram juntos:

- Olha do outro lado da rua.

- Humm, a Clara, tia do Marquinhos, e dai?

- Como e daí, disse Carlos, você é cego?

- Claro que não, se eu estou vendo ela direitinho.

Júlio coloca as mãos na cabeça:

- Presta atenção Jorge, olha como ela está, não tem nada chamando sua atenção?

Jorge olha para dentro de casa, para os dois lados da rua, como se procurasse algo, então disfarçadamente olha para frente.

- Não acredito que é o que estou pensando?

- Mas é claro, diz Júlio, você viu? É azul, não é?

- Vocês estão parados aqui, só porque dá pra ver um pedaço da calcinha dela?

Carlos tenta se defender:

- Mas nessa meia hora que estamos aqui, quase deu pra ver algo mais.

- Meia hora? Você disse meia hora? Espero que minha mulher não ache que estou no carro com vocês. Deixa eu falar umas coisinhas para vocês.

Então Jorge passa um sermão nos amigos, enumerando todos os motivos por que deveriam sentir vergonha de estar fazendo isso, complementando com um, "Ninguém é mais criança aqui!".

Carlos e Júlio tentam se defender, em vão, e acabam concordando que é melhor ir embora, pois Jorge, além de chato, está chamando muita atenção e não vão conseguir ver mais nada ali, então Carlos dá partida no carro e sai falando alto:

- Tchau seu velhinho.

Enquanto Júlio coloca a cabeça fora do carro e grita também:

- Velhinhooooooooooooooo...

Jorge olha para Clara que, sem saber ser a causadora, ri da situação e diz:

- Liga não Jorge, amigo é assim mesmo, tudo doido.

Ele ri, dá um tchauzinho e abre o portão, mas na hora de trancá-lo, demora uns segundos a mais e dá uma nova olhada na Clara; então entra em casa devagar, aperta o passo no meio do quintal, entra pela porta e encontra sua mulher na sala, dá um beijo nela, deixa suas coisas e sai para o quintal de novo, já pegando a vassoura.

- Para que essa pressa toda querido?

- Você viu aquela calçada amor? Pelo amor de Deus, está um lixo só. Vou aproveitar essa meia horinha, antes do sol se por, e dar uma bela limpada nela, assim ainda aproveito um pouco da bela vista que está lá fora.

E saiu de pazinha, saco de lixo e vassoura em riste. Ao abrir o portão, acenou novamente para Clara e começou a limpar a calçada vagarosamente, enquanto ao mesmo tempo assobiava, Azul da cor do mar.

Joakim Antonio

 "Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico (desde menino)." - Nelson Rodrigues

(Foto: Jarkiel Gonzgarowska)

Nelson Falcão Rodrigues (Recife, 23 de agosto de 1912 - Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1980) . Autor. Ao longo de sua trajetória artística, Nelson Rodrigues é alvo de uma polêmica que o faz conhecer tanto o sucesso absoluto, como em Vestido de Noiva, 1943, cuja encenação por Ziembinski marca o surgimento do teatro moderno no Brasil, quanto a total execração, como em Anjo Negro, 1948, ousada montagem para a época pelo Teatro Popular de Arte. Distante de qualquer modismo, tendência ou movimento, cria um estilo próprio e é hoje considerado um dos maiores dramaturgos brasileiros.


(...)Na maioria das obras do autor, a realidade tem apenas o papel de situar a ação, que se concentra de fato sobre o universo interior das personagens. O jogo entre a verdade interior - nem sempre psíquica - e a máscara social é outro elemento recorrente em sua dramaturgia. As personagens podem se desmascarar ao longo da narrativa - como em Beijo no Asfalto ou Toda Nudez Será Castigada - ou estarem francamente libertos de qualquer censura interna ou externa como em Álbum de Família - e, nesse caso, a supressão das leis da conveniência que permite o convívio termina em tragédia absoluta, restando pouca vida ao final da narrativa. A morte, como em toda a tragédia, ronda as tramas do autor e, via de regra múltipla, marca o último ato. Com exceção de Viúva, porém Honesta e Anti-Nelson Rodrigues, a morte, nas demais 15 peças, atinge as personagens centrais e toda a narrativa se desenha em torno da inevitabilidade desse destino.

Sobre a assimilação e receptividade da obra rodriguiana na cena nacional, escreve seu maior estudioso, o crítico Sábato Magaldi: "Nelson Rodrigues tornou-se desde a sua morte, em 21 de dezembro de 1980, aos 68 anos de idade (ele nasceu em 23 de agosto de 1912), o dramaturgo brasileiro mais representado - não só o clássico da nossa literatura teatral moderna, hoje unanimidade nacional. Enquanto a maioria dos autores passa por uma espécie de purgatório, para renascer uma ou duas gerações mais tarde, Nelson Rodrigues conheceu de imediato a glória do paraíso, e como por milagre desapareceram as reservas que, às vezes, teimavam em circunscrever sua obra no território do sensacionalismo, da melodramaticidade, da morbidez ou da exploração sexual.

Parece que, superado o ardor polêmico, restava apenas a adesão irrestrita. As propostas vanguardistas, que a princípio chocaram, finalmente eram assimiláveis por um público maduro para acolhê-las. Ninguém, antes de Nelson, havia apreendido tão profundamente o caráter do país. E desvendado, sem nenhum véu mistificador, a essência da própria natureza do homem. O retrato sem retoques do indivíduo, ainda que assuste em pormenores, é o fascínio que assegura a perenidade da dramaturgia rodrigueana". Enciclopédia Itaú Cultural - Teatro


Para saber mais:



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