Quando um poeta morre, a natureza cala-se.
Joakim Antonio
A noite dos poetas assassinados
© Jane Bichmacher de Glasman*
O ano é 1952, último ano da vida de Stalin. O lugar, Rússia, União Soviética. O dia, 12 de agosto. Mais especificamente, a noite de 12 para 13 de agosto de 1952.
Nesta data, cerca de 15 judeus soviéticos, incluindo os mais proeminentes escritores, poetas, e artistas judeus russos de língua ídishe foram secretamente julgados e condenados por crimes capitais, incluindo traição, espionagem e nacionalismo burguês.Eles eram visados devido à sua participação no Comitê Anti-Fascista Judaico e à sua resposta como judeus às atrocidades nazistas no território soviético ocupado.
Nesta noite eles foram executados por ordem de Josef Stalin, no calabouço da infame prisão da praça Lubyanka em Moscou.
Entre as vítimas estavam Peretz Markish, David Bergelson, Itzik Fefer, Leib Kvitko, David Hofstein, Benjamin Zuskin, Solomon Lozovsky, Boris Shimeliovich Dovid Bergelson e Der Nister.
A data é lembrada como a “noite dos poetas assassinados.”
Itzik Fefer, Albert Einstein e Solomon Mikhoels, em 1943 |
Seus escritos mostram pouco da nostalgia ou devoção que vemos nas descrições da cultura ídishe[1] o pré-Holocausto. Todos eles - os poetas Peretz Markish, Dovid Hofshteyn, Itzik Fefer, Leyb Kvitko e o novelista Dovid Bergelson - assistiram a Revolução soviética em 1917. A maioria havia se mudado do shtetl[2], das aldeias da Pale[3], para Kiev e Moscou, em busca de liberdade intelectual e artística no fervor do modernismo do princípio do século XX. Todos apoiaram o estado comunista emergente.
Ouvimos sua vibração na abertura do poema[4] sem título de Markish:
Eu não sei se eu estou em casa
ou desabrigado.
Estou correndo, minha camisa
sem botões, sem limites, ninguém
me segura, sem começo,
sem fim
meu corpo é espuma
cheiro de vento
Agora
é meu nome.
Seu sentido do futuro ecoa na estrofe do poema “Cidade” de Hofshteyn:
Cidade!
Eu cheguei em teu porto
no navio de minha solidão.
O navio de minha solidão…
Eu lavei suas velas
nos ventos…
Elas definharam e rasgaram
nos comprimentos e nas larguras
do mundo.
Eram férteis escritores. Após anos no exterior, em Berlim e na Palestina, de 1923 a 1926, Hofshteyn retornou à União Soviética e publicou numerosos volumes de poesia e traduções. Markish fundou o movimento ídishe modernista conhecido como Khaliastre durante seus anos em Varsóvia. Após seu retorno à Rússia, foi-lhe concedido o Prêmio Lênin de Literatura em 1939. Fefer editou os jornais ídishes Prolit e Desafio e tornou-se membro da União de Escritores Soviéticos. Em 1943, viajou aos Estados Unidos com o ator Solomon Mikhoels atraindo audiências maciças em Nova York em apoio ao trabalho da liga Anti-Fascista.
Por que eles foram assassinados?
Todos estavam relacionados ao Comitê Anti-Fascista Judaico, estabelecido em 1942 pela União Soviética para atrair o apoio das comunidades judaicas dos Países Aliados na guerra contra Hitler. Com o fim da guerra, a organização já não era mais útil a seus propósitos. Stalin, como soía fazer, virou-se contra seus líderes. Prendeu a maioria entre 1948 e 1949, levou a julgamento em 1952 – culminando com sua execução na noite de 12 de agosto no porão da prisão Lubyanka.
As mortes destas figuras centrais na literatura ídishe soviética representaram novo golpe à cultura judaica já devastada pelo Holocausto. Silenciaram o núcleo remanescente de intelectuais ativos politicamente e excluíram presumir que tal cultura pudesse sobreviver na Rússia pós-guerra.
É difícil para alguns de nós recordar agora o otimismo inicial inspirado pela revolução soviética. Tendemos a ter pouca simpatia pelos escritores que compuseram cantos para os trabalhadores ou para Stalin, como vários destes homens.
Mas com isto nós nos esquecemos de nossas próprias vidas: como nos comprometemos para ganhar a vida; como um ano se transforma 5, em 10; como permanecemos em um trabalho ou em um relacionamento demasiado longo, sem esperança, ou porque nós amamos.
Esquecemos também das difíceis opções dos artistas judeus daquela época, já estranhos às suas tradições, que não obstante criaram um lar, tentando realizar em alguma medida sua esperança. E esquecemos da ruína gradual mas catastrófica forjada por Stalin.
Uma voz mais pungente para o que foi perdido pode ser ouvida no clamor de Hofshteyn:
Meu amor, meu amor puro!
uma chamada a que sempre atentei
muda, carreguei-a
mil dias:
acima da cabeça cinzenta de meu povo,
para ser
um brilho jovem!
Brilho desperdiçado: interrompido, silenciado e recordado como o que se torna tão distante...
Honremos sua memória com alguns versos destes poetas.
Como seu fim, profética e tragicamente anunciado por Kvitko, em 1919, em “Morte Russa”:
Morte russa
é toda a morte.
Dor russa
é toda a dor.
Como está agora o coração do mundo?
E a sua ferida purulenta?
Pergunta a uma criança.
Pergunta a uma criança judia.
Publicado em Visão Judaica Ed. 62, outubro de 2007. (PDF)
* Doutora em Língua Hebraica, Literaturas e Cultura Judaica -USP, Professora Adjunta, Fundadora e ex-Diretora do Programa de Estudos Judaicos –UERJ, escritora.
[1] Ídishe- idioma judaico originado do alemão grafado em caracteres e com muitos vocábulos hebraicos.
[2] Shtetl (do ídishe: cidadezinha) é o nome ídishe das cidades judaicas na Europa oriental (Polônia, Rússia, Belarus
etc.).
[3] Sob o governo czarista, os judeus não tinham permissão para viver fora do Território de Assentamento (Pale), uma região da Rússia, onde, até 1907, massacres eram uma ocorrência comum.
[4] Os poemas foram traduzidos pela autora deste artigo. Para ler mais deles e sobre eles contate a mesma.
Para saber mais:
Português
- Judeus na União Soviética (1917-1991) em Cybersio
English
- Night of the Murdered Poets, with more links in Wikipedia.
Imagens:
1. Silence by fokkusunm
2. Itsik Fefer and Shlomo Mikhoels meet with Albert Einstein. Princeton, 1943. (YIVO Archives)
Olá Joakim
ResponderExcluirNão conhecia esse episódio histórico, nem os poemas. Gostei muito.
Abraço
Eis um passado para não se esquecer, para jamais se repetir.
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