domingo, 18 de agosto de 2013

Abacaxi



Volto minha atenção para o espaço em volta e noto que estranhamente, uma multidão se junta na rua bem abaixo de onde estou, ouço gritos histéricos das janelas, vejo pessoas de braços estendidos fazendo sinais, não compreendo, aliás, ainda não ouço fora, ainda estou perdido em meu próprio som interior, eu tento perguntar o que há, mas no meio dessa multidão será apenas um pio, olho novamente para o céu e estendo os braços em forma de cruz. Começo a sentir o vento me abraçando, como se quisesse me levar, também começo a ouvir uma canção quando ele me acaricia os ouvidos. Nunca me senti tão livre, nunca me senti tão solto. Apesar de meus novos olhos terem me metido nesse tremendo abacaxi.

Olhos estes, que mudaram hoje pela manhã, pois repentinamente olhei pela janela limpa ontem e me esqueci do amanhã, pensando o que fazia naquele cubículo, usando gravata num dia de extremo calor, falando ao telefone já meio surdo e sentido dores nas costas recurvadas, há muito, pelo peso dessa vida genérica, feliz por ser como todos. Mas naquela hora, com novos olhos eu a vi, a moça mais linda do mundo, num vestidinho solto, sorrindo aberto, pele corada e cabelos ao vento, praticamente uma música valsando na partitura da rua, cujo corpo cantava, sou feliz assim. Eu ainda estava com as roupas do escritório, mas talvez, só talvez, ela tenha guardado a cor dos meus olhos, esse instrumento tão mal usado por nós, mas apreciado pelo brilho que grita e atesta, estou vivo. Será que por um acaso do destino ela me viu, enquanto eu apreciava da janela do escritório, ela comendo um pedaço de abacaxi?

Não me contive e saí correndo para encontrá-la, mas ela não estava mais lá, perguntei ao senhor da banquinha e ele disse que não se lembrava dela, como pode, que pessoa é essa que não presta atenção nos seus semelhantes, com certeza aquele sorriso devia ser de plástico ou cirurgicamente esculpido, afinal, quem sorri verdadeiramente sem prestar atenção no outro, meus olhos a viram sorrindo e ele também, bom, de qualquer modo precisava achar um jeito de encontrá-la. Dei uns poucos passos, olhei em volta e para cima, vi um mirante perfeito, então subi correndo com o dinheiro na mão, pois vejam que absurdo, o senhor da banquinha não tinha mais abacaxi.

Confesso que não sei o que aconteceu no meio do caminho, só lembro vagamente, enquanto subia, de pegar alguma coisa de uma senhora e um ninho para servir de chapéu, pois o sol está quente demais. Agora, uma coisa eu lembro bem, ao mesmo tempo em que procurava por minha musa, apreciava a vista da prainha, tão linda daqui de cima. De repente um grito quebra o silêncio e me vejo novamente aqui, alguém grita algo incompreensível e outra voz se junta à dele, e mais uma, e mais outra, então ouço claramente centenas deles, agora com uma faixa improvisada, gritando juntos: “Não se jogue, não se jogue.”, eles pensam que eu vim para me jogar, não sabem que agora é que peguei o gosto de observar o bom da vida. Mas de repente eu a vejo, aquela que tentei achar a tarde inteira, ela me olha com uma cara triste, será que sabe? Será que ela também conseguiu mirar meu rosto, será que realmente não posso voar, será que paguei as contas do banco, será que a boca dela tem gosto de abacaxi?

Tento acenar para ela e me desequilibro no parapeito, todos gritam desesperados, mas me arrumo e grito que não vá embora, ninguém me ouve é claro e ela coloca as mãos no rosto, olha para o chão e sem aguentar começa a ir embora, eu num ímpeto de conhecê-la, tocá-la, provar abacaxi, me esqueço sem asas e dou um passo... Gritaria geral, enquanto caio o tempo congela, vejo-a movendo-se em câmera lenta, pensar demasiadamente rápido é um veneno nessas horas, não vejo o que foi minha vida passar na minha frente como dizem, mas vejo o que seria minha vida com ela passar, do começo ao fim, já velhinhos com filhos, netos e um sítio, de mãos dadas e o sabor eterno de seu beijo, com gosto de abacaxi. Enquanto a observo, congelado no tempo, ouço todos gritando um não em uníssono e pisco, sinto um impacto forte na cintura, todo o ar sai dos meus pulmões instantaneamente, sinto minhas pernas baterem no concreto armado e inacreditavelmente, não há dor, apenas um torpor e uma voz grossa, no começo incompreensível, mas identificável ao terminar de piscar, um bombeiro amarrado a uma corda me agarrou pela cintura na hora do pulo, então desmaio pensando no perfume dela, de essência de abacaxi.

Acordo sendo levado para a ambulância e ouço várias vozes, a maca para por um instante e umas crianças gritam, "Moço, moço o senhor é doido?", outras pessoas passam e alguém diz, "Ele pensou que fosse um pássaro", "Um maluco", "Trabalho com ele, saiu correndo da sala hoje, que nem louco!". Já dentro da ambulância, reflito e vejo que foi mesmo loucura, não há como achar alguém assim e... De repente sinto um cheiro característico, tento sair da maca e alguém me segura, tenho certeza que é ela, então grito, "Te amo, te quero, pra sempre!", o enfermeiro pergunta com quem estou falando e faço um gesto para a porta da ambulância, ele então abre devagar e o cheiro aumenta, o enfermeiro pede para a pessoa aparecer na porta, meu coração dispara, eu sei que é ela, sinto o cheiro aumentar e também sei que só ela teria esse cheiro maravilhoso de... "Oi moço, ah eu te conheço de hoje à tarde, ainda vai querer? Tô cheio de abacaxi!".



Joakim Antonio


Photo by Arthur Elgort

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